O poeta só escreve o que ninguém sabe
só espera o que nunca pode dar-se
o milagre que não virá a repetir-se
o que nunca tampouco tem sentido
o poeta conhece as cores pelo cheiro
as formas pelo tempo
o grito pelo tacto
o poeta escapa entre os dedos
é um peixe paleocénico
o poeta chora em língua estrangeira
o poeta só não acredita no que crê
é um sábio geómetra doutras dimensões
de mundos paralelos que são planos
oblíquos, como espinhos no interior da
casa
só sabe da eterna ressurreição da palavra
na transmutação lunar dos dias
feito eco de fragrâncias mágicas
só crê na fraterna limpidez das seivas
na concreta viuvez dum líquen
o poeta é um bicho instigador
demolidor
quando sai à rua alimenta-se do ar
come pedras e pó
corre a cidade com os lábios cerrados
atrasa o abismo dos horários
e só embarca em navios com árvores por
dentro
e pássaros nos remos
direito ao grande mar da obscuridade
e da ciência abstracta dum beijo
O poeta não tem medo da chuva
nem de tremores de terra
mesmo com o ágil vento sobre a cabeça
o poeta sai descalço
avança sem medo por entre as pedras
porque nas pedras reconhece os cristais
e a lama
o poeta respira pelos poros
dos ouvidos
e é com os ouvidos que compõe
a música matinal perpétua
que traz nos olhos.