quinta-feira, 7 de junho de 2012

O INSTIGADOR


           O poeta só escreve o que ninguém sabe
         só espera o que nunca pode dar-se
         o milagre que não virá a repetir-se
         o que nunca tampouco tem sentido
        
         o poeta conhece as cores pelo cheiro
         as formas pelo tempo
         o grito pelo tacto

         o poeta escapa entre os dedos
         é um peixe paleocénico
         o poeta chora em língua estrangeira

         o poeta só não acredita no que crê
         é um sábio geómetra doutras dimensões
         de mundos paralelos que são planos
         oblíquos, como espinhos no interior da casa
         só sabe da eterna ressurreição da palavra
         na transmutação lunar dos dias 
                                              
         feito eco de fragrâncias mágicas
         só crê na fraterna limpidez das seivas
         na concreta viuvez dum líquen

         o poeta é um bicho instigador
         demolidor

         quando sai à rua alimenta-se do ar
         come pedras e pó
         corre a cidade com os lábios cerrados
         atrasa o abismo dos horários
         e só embarca em navios com árvores por dentro
         e pássaros nos remos
         direito ao grande mar da obscuridade
         e da ciência abstracta dum beijo
        
         O poeta não tem medo da chuva
         nem de tremores de terra
         mesmo com o ágil vento sobre a cabeça
         o poeta sai descalço
         avança sem medo por entre as pedras
         porque nas pedras reconhece os cristais
         e a lama
         o poeta respira pelos poros
         dos ouvidos
         e é com os ouvidos que compõe
         a música matinal perpétua
         que traz nos olhos.