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sábado, 2 de outubro de 2010

POEMA AO PÓ

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A redescoberta que é ver o pó, cheirar o pó,
cheirar a pó. É um rumor inerte, um retrato
tangível de outras memórias perfurantes,
um vazio entre azuis e baços no chão da terra
gritando segredos abatidos ao silêncio ileso.
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Praticar a ciência do pó é viajar pelos gelos
da montanha, um texto insondável de signos
sobre a água, reminiscência doutras águas
de apenas a cognição nua, virgem, das fontes
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é desvendar a erosão, o murmúrio de colunas
gregas, efémeras, a inocente exaltação das aves
assim que o sol reacende a festa inadiável

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e contemplar uma indústria sem nome e sem data,
sem prólogo, divina, puríssima, demoníaca.

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em "Terrachã", ed. AJEA
 
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domingo, 26 de setembro de 2010

DESÍGNIO

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São os ventos a interpretar o verdadeiro desígnio destes campos,
migalhas de pó que se transportam ondeando as ervas e os matos
para um tempo breve, onde dispor um incêndio, junto ao corpo
das excessivas lembranças, no anónimo exílio das cidades.
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Quanto basta é o sossego dos lugares soltos ao festim do sol,
a asa dum insecto que se recorta no azul perdurável da terra.
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Assim me ensinaram os perfumes da urze, que chegam de longe,
o estorninho escondido dos olhares, desconfiado dos destinos.
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E aqui reconheço, no chão caminho das águas, a serenidade
deste pastor imperturbável às formas fulgurantes do silêncio
que soa entre as árvores, o trânsito liberto, perpétuo, das seivas,
a exacta, útil degenerescência do conceito urbano de solidão.
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 em "Terrachã", ed. AJEA, 2004